Rodrigo Quadrante
No último mês, o Direito Falimentar foi objeto de várias reportagens que trouxeram a preocupação da comunidade jurídica acerca das alterações trazidas pelo Projeto de Lei 03/2004, da Câmara dos Deputados [1].
A grande parte das críticas ao projeto, que foi aprovado e hoje está em trâmite no Senado, reside na velocidade com que ele foi aprovado pela Câmara, na complexidade das mudanças propostas e na falta de diálogo da Casa com as diversas associações de classe e com o próprio Poder Judiciário [2].
Hoje, se espera que o Senado promova esse diálogo, o que, certamente, poderá aprimorar o texto e incorporar eventuais melhorias sugeridas pelas diversas associações de classe ligadas à insolvência empresarial, ou ainda, pelo próprio Poder Judiciário.
No entanto, ainda que o PL 03/2024 possa alcançar eventuais melhorias no seu texto, é certa a instabilidade que as alterações trarão ao sistema jurídico, gerando inequívoca insegurança jurídica até que ocorra a sua pacificação no Poder Judiciário. Com efeito, o PL traz inovações como o gestor fiduciário que, ainda que possam ser entendidas como uma evolução, não foram fruto de amplo debate com toda a comunidade jurídica.
Reforma recente
Cumpre notar que a Lei de Falências sofreu recente alteração, nos termos da Lei nº 14.112, de 24 de dezembro de 2020, a qual promoveu reformas que entraram em vigência há poucos meses, como, por exemplo, o prazo decadencial para distribuição de impugnações e habilitações de crédito contados da decretação da falência, ou mesmo, o prazo do fresh start instituído para reabilitação do falido [3].
Essas alterações que foram objeto da Lei 14.112 trarão celeridade aos processos de falência, sendo injusto questionar os benefícios da reforma promovida em 2020. Mas não é só. A pacificação dos temas referentes à última reforma ainda não ocorreu, eis que grande parte dos temas sequer chegou à análise do Superior Tribunal de Justiça.
Especialização e previsibilidade
A pacificação e previsibilidade das decisões em matéria falimentar é tema tão relevante que o próprio Conselho Nacional de Justiça, preocupado com a uniformização da jurisprudência sobre o Direito Falimentar, houve por bem editar a Recomendação nº 56/2019, em 29 de outubro de 2019, cujo propósito nada mais era do que recomendar a todos os Tribunais de Justiça dos estados e Distrito Federal a promoção de varas e câmaras especializadas em recuperação empresarial e falência.
A justificativa para tanto, de acordo com a recomendação, foi a indicação de que essas varas e câmaras especializadas alcançariam, além de um ganho de produtividade em relação às varas e câmaras de competência comum [4], a maior previsibilidade das decisões proferidas pelo Poder Judiciário, o que implicaria no aumento da segurança jurídica àqueles que buscariam pacificar eventuais conflitos [5].
Ora, como bem exposto na Recomendação nº 56/2019, a “aplicação ineficaz das ferramentas legais do sistema de insolvência empresarial gera prejuízos sociais gravíssimos, seja pelo encerramento de atividades viáveis, com a perda dos potenciais empregos, tributos e riquezas, seja pela manutenção artificial do funcionamento de empresas inviáveis, circunstâncias que impede a produção de benefícios econômicos e sociais e atua em prejuízo do interesse da sociedade e do adequado funcionamento da empresa”.
Como se vê, o Conselho Nacional de Justiça, muito diferente da Câmara dos Deputados, já se mostrava sensível a previsibilidade e harmonização do sistema jurídico em matéria falimentar e já havia indicado a adoção da especialização das varas e câmaras de todos os Tribunais de Justiça dos Estados e Distrito Federal como política judiciária necessária à pacificação de eventuais conflitos.
Uniformidade
A adoção de varas e câmaras especializadas em Direito Falimentar, nos termos de relatório elaborado pela Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), gera a uniformidade das decisões, eis que “as decisões de juízes especialistas tendem a ter maior qualidade técnica em casos complexos, o que influencia sua maior uniformidade”.
“A segunda razão é que juízes especialistas são em menor número do que juízes generalistas. Assim, como há menor número de pessoas tomando decisões, estas tendem a ser mais uniformes. Por último, juízes especialistas, em geral, compartilham a mesma formação técnica adicional ao conhecimento jurídico. Esta forma similar também tende a trazer maior uniformidade nas decisões. Do ponto de vista social, a maior uniformidade das decisões leva a um direito mais previsível. Esta previsibilidade melhora as condições para a resolução de conflitos” [6].
TJ-SP na vanguarda
Cumpre notar que, muito antes da Recomendação 56/2019, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), em junho de 2005, promoveu a instalação de duas Varas Especializadas em Falências e Recuperações Judiciais e a primeira Câmara Especial de Falências e Recuperações Judiciais.
A medida foi considerada vanguardista, além de um grande sucesso, o que levou à instalação da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. Posteriormente, foi editada a Resolução nº 558/11, que unificou as competências da Câmara Reservada à Falência e Recuperação Judicial e da Câmara Reservada de Direito Empresarial, que se tornaram, respectivamente, a 1ª e 2ª Câmaras Reservadas de Direito Empresarial, formando, o Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial.
Bem se vê que o TJ-SP está promovendo, de forma acertada, a especialização das suas varas e câmaras em matéria falimentar, o que nos leva à conclusão de que a previsibilidade das suas decisões sobre as matérias afetas ao Direito Falimentar e ao Projeto de Lei 03/2024 tenderão a maior previsibilidade em todo estado de São Paulo.
Contudo, contrário sensu, aqueles tribunais dos estados e Distrito Federal que ainda não adotaram a Resolução 53/2019, do CNJ, tenderão a proferir decisões mais imprecisas, sofrendo os seus jurisdicionados maior instabilidade decorrente do PL 03/2024 acerca do Direito Falimentar que poderá viger as complexas relações da insolvência empresarial.
Portanto, ainda que exista uma clara preocupação com as alterações promovidas pelo PL 03/2024, as quais promoverão grandes alterações em matéria falimentar, é certo que há grande expectativa de que os eventuais conflitos sejam resolvidos pelo Poder Judiciário, o qual, por meio da adoção da política judiciária da especialização das suas varas e das suas câmaras, poderá corrigir eventuais desacertos do texto que será aprovado pelo Poder Legislativo.
[1] Oreste Nestor Laspro, O Projeto de Lei 03/2024 e a (in)eficiência do processo falimentar, Revista Consultor Jurídico, https://www.conjur.com.br/2024-fev-05/o-projeto-de-lei-03-2024-e-a-ineficiencia-do-processo-falimentar. Projeto de lei pode afetar grandes casos de falência em andamento, Valor Econômico, 26 de março de 2024 e Projeto que muda lei de falências pode travar a pauta da Câmara, Valor Econômico, 19 de março de 2024.
[2] Alexandre Lazzarini, Maria Rita Rebello Pinho Dias, Clarissa Tauk e Andrea Palma, Falências: qual a urgência na sua modificação? , Revista Consultor Jurídico. https://www.conjur.com.br/2024-mar-12/falencias-qual-a-urgencia-na-sua-modificacao
[3] Maria Rita Rebello Pinho Dias e Cesar Ciampolini Neto, A profunda alteração ao procedimento falimentar proposta pelo PL 3/2024, Revista Consultor Jurídico. https://www.conjur.com.br/2024-jan-22/a-profunda-alteracao-ao-procedimento-falimentar-proposta-pelo-pl-3-2024/
[4] Maria Rita Rebello Pinho Dias, Contribuição da especialização das varas de falências e RJs, Revista Consultor Jurídico. https://www.conjur.com.br/2023-ago-14/direito-insolvencia-contribuicao-especializacao-varas-falencias-rjs/
[5] Associação Brasileira de Jurimetria, Formas alternativas de gestão processual: a especialização de varas e a unificação de serventias, Brasília, 2020.
[6] Relatório Analítico Propositivo, Justiça Pesquisa, Formas Alternativas de Gestão Processual: A especialização de varas e a unificação de serventias, Associação Brasileira de Jurimetria- ABJ, Brasília, 2020.
Publicado originalmente no Conjur.