23 de dezembro de 2024
O Marco Geral das Garantias e a Lei de Falências
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Por Rodrigo Quadrante para o ConJur

No final de outubro, foi sancionada a Lei 14.711/2023, denominada Marco Geral das Garantias. Esta lei tem como objetivo baixar o custo do crédito, reduzir a inadimplência, aprimorar as regras das garantias dadas aos empréstimos, bem como facilitar a retomada dos bens dados em garantia.

O presente artigo analisará o Marco Geral das Garantias à luz da Lei de Recuperação de Empresas e Falências (LRF), bem como a criação da alienação fiduciária de propriedade superveniente e seus reflexos nos processos de recuperação judicial e nos processos de falência.

A primeira análise sobre o tema nos leva a conclusão de que o legislador, ao criar o Marco Geral das Garantias, preocupou-se em deixar claro que o credor garantido por alienação fiduciária da propriedade superveniente é um credor extraconcursal, nos termos do artigo 49, parágrafo 3º, da LRF e do parágrafo 10º do artigo 22 da Lei 9.514/1997 [1].

Sucede que, ainda que o parágrafo 10º do artigo 22 da Lei 9.514/1997 deixe claro que não se aplica a LRF a alienação fiduciária da propriedade superveniente, tendo em vista que o crédito garantido por alienação fiduciária de propriedade superveniente é extraconcursal, ao que parece, a aplicação fática sobre este tema não será simples.

Isto porque o legislador trouxe uma clara inovação ao sistema de garantias, eis que não era permitido, até então, que um imóvel fosse dado em alienação fiduciária para garantir mais de uma dívida, tendo se estabelecido, ainda, que a eficácia da alienação fiduciária da propriedade superveniente só ocorrerá após cancelada a alienação fiduciária que lhe antecede, nos termos do parágrafo 3º do artigo 22 da Lei 9.514/1997 [2].

Ora, o que se criou foi uma nova modalidade de alienação fiduciária “de segundo grau”, se permitindo que um imóvel seja dado em garantia para mais de um credor, o que, certamente, possibilitará que o devedor obtenha mais recursos com um mesmo imóvel.

A pluralidade de garantias fiduciárias sobre um mesmo imóvel e o concurso dos credores sobre o bem, por sua vez, foram organizados pelo parágrafo 4º do artigo 22 da Lei 9.514/1997 [3], ao se estabelecer que aquele credor que efetuou o primeiro registro tem preferência sobre os demais credores, sendo certo que os demais credores só terão o direito de se sub-rogarem sobre os valores excedentes do bem adquirido por terceiro após o pagamento do primeiro credor e, assim, sucessivamente.

Os eventuais questionamentos sobre o acerto da lei podem nascer quando o bem dado em garantia fiduciária para mais de um credor seja de propriedade de uma empresa que está em recuperação judicial, ou, falida, e o produto da venda deste bem seja insuficiente para adimplir o crédito de todos os credores fiduciários.

Isto porque o parágrafo 3º do artigo 22 da Lei 9.514/1997 determina que a propriedade fiduciária superveniente só se tornará eficaz a partir do cancelamento da propriedade fiduciária anteriormente constituída. Assim, se um credor fiduciário deixar de ser pago pelo produto da venda do bem dado em garantia, o que poderia implicar na ineficácia do seu direito sobre a propriedade fiduciária superveniente, poderíamos chegar à conclusão de que aquele credor se submeteria a LRF, em razão dele ter perdido o direito sobre o bem.

Ora, caso chegássemos a esta conclusão, não estaríamos aplicando o  parágrafo 2º do artigo 6º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, o qual dispõe que “consideram-se adquiridos, assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aquele cujo começo do exercício tenha termo, prefixo, ou condição preestabelecida, inalterável, a arbítrio de outrem.”

Não se deve confundir aqui a existência do direito sobre a propriedade fiduciária superveniente de um credor com o momento em que este credor pode alcançar a eficácia do seu direito de garantia. Com efeito, o direito fiduciário da coletividade dos credores sobre o bem dado em garantia existe desde o seu registro na matrícula do imóvel, o que não implica na eficácia de um eventual credor exigir a excussão do bem antes do pagamento do credor fiduciário anterior, ou ainda, do seu crédito estar vencido.

O que se tem até aqui é a existência, desde o registro da propriedade fiduciária superveniente, de um futuro direito fiduciário dado em garantia, o qual é tutelado como direito fiduciário superveniente. Este direito, por sua vez, é diferente do direito fiduciário propriamente dito, eis que este não é submetido a baixa de direito anterior e o produto da alienação do bem lhe é dado em primeiro lugar, ao passo que aquele direito fiduciário superveniente se submete a direito fiduciário anterior e seu beneficiário só recebe o seu crédito após a satisfação dos credores fiduciários anteriores.

Portanto, como o direito fiduciário superveniente nasce com o seu registro na matrícula do imóvel e o parágrafo 10º do artigo 22 da Lei 9.514/97 é expresso ao concluir que a LRF não se aplica a alienação fiduciária da propriedade superveniente, tornando tal credor fiduciário não sujeito ao processo de recuperação judicial e de falência,  pode-se concluir que este direito fiduciário, após o seu devido registro, existe e, por conseguinte, tal crédito não se submete à LRF, sendo de natureza extraconcursal.


[1] parágrafo 10º do artigo 22 da Lei 9.514/1997 — “o disposto no parágrafo 3º do artigo 49 da Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, beneficia todos os credores fiduciários, mesmo aqueles decorrentes da alienação fiduciária da propriedade superveniente”.

[2] parágrafo 3º do artigo 22 da Lei 9.514/1997 — “a alienação fiduciária da propriedade superveniente, adquirida pelo fiduciante, é suscetível de registro no registo de imóveis desde a data de sua celebração, tornando-se eficaz a partir do cancelamento da propriedade fiduciária anteriormente constituída”.

[3]  parágrafo 4º do artigo 22 da Lei 9.514/1997 — “havendo alienações fiduciárias sucessivas da propriedade superveniente, as anteriores terão prioridade em relação às posteriores na excussão da garantia, observando que, no caso de excussão do imóvel pelo credor fiduciário anterior com alienação a terceiros, os direitos dos credores fiduciários posteriores sub-rogam-se no preço obtido, cancelando-se os registros das respectivas alienações fiduciárias”.