Por Bruno Romano
A intervenção do Poder Judiciário se torna medida essencial para restabelecer a segurança jurídica e proteger os direitos dos contribuintes
Diante dos efeitos devastadores da covid-19, justificou-se a criação do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse) pela Lei nº 14.148/2021, sancionada em maio de 2021. O Perse concedeu uma isenção temporária, válida por 60 meses, para o Imposto de Renda (IRPJ), a CSLL, o PIS e a Cofins às empresas do setor de cultura, turismo e eventos que enfrentaram um período de lockdown e severas restrições operacionais.
O objetivo era amparar esses segmentos no processo de recuperação econômica após a crise. Apesar de a isenção ter sido inicialmente vetada pelo Executivo, o Congresso Nacional derrubou o veto e permitiu que o benefício fosse promulgado em março de 2022, com previsão de vigência até março de 2027. No entanto, a edição da Lei nº 14.859/2024 trouxe mudanças drásticas ao Perse, impondo um limite financeiro de R$ 15 bilhões em renúncias fiscais e restringindo o número de setores beneficiados.
Essa nova limitação, justificada pela intenção de conter a perda de arrecadação, gerou apreensão entre os contribuintes, uma vez que a Receita Federal divulgou (i) em agosto de 2024 que, até junho de 2024, as empresas já haviam utilizado R$ 7,9 bilhões em incentivos fiscais, correspondendo a mais da metade do teto estabelecido, e (ii) no dia 14 deste mês que, no ano de 2023, as empresas já haviam utilizado R$ 15,6 bilhões do Perse. Por essa razão, contribuintes passaram a ter o receio de que o benefício não esteja mais vigente a partir do ano de 2025.
A questão central levantada com o fim prematuro do Perse reside na violação da segurança jurídica, um dos pilares do Estado de Direito, consagrada no inciso XXXVI do artigo 5º da Constituição, que assegura que “a lei não prejudicará o direito adquirido, [e] o ato jurídico perfeito”, proporcionando estabilidade e previsibilidade nas relações jurídicas. No contexto do Perse, os beneficiários tinham a expectativa legítima de usufruir da isenção até março de 2027.
Alterar o prazo previamente estabelecido fere essa segurança, prejudicando planejamentos financeiros e contratuais das empresas, que haviam ajustado suas operações considerando a permanência do benefício. Além disso, a segurança jurídica também implica a preservação dos atos praticados em conformidade com a legislação vigente. As empresas beneficiadas pelo Perse se adequaram aos requisitos legais, como a inscrição no Cadastur, para que pudessem acessar o programa.
Ao introduzir um limite financeiro para a renúncia fiscal, a nova lei prejudica os contribuintes que já haviam se ajustado às normas estabelecidas, uma vez que esses atos deveriam estar protegidos de alterações que pudessem afetar retroativamente os direitos adquiridos. Outro ponto relevante é a ilegalidade da revogação prematura do benefício fiscal concedido pelo Perse, fundamentada no artigo 178 do Código Tributário Nacional (CTN). Esse dispositivo estabelece que uma isenção concedida por prazo certo e em função de condições específicas não pode ser revogada por nova legislação.
A isenção do Perse, ao fixar alíquota zero para IRPJ, CSLL, PIS e Cofins por um período determinado e atrelada a requisitos específicos, enquadra-se exatamente na exceção protegida pelo artigo 178 do CTN. Dessa forma, a alteração trazida pela Lei nº 14.859/2024 é ilegal, pois desconsidera as diretrizes de lei materialmente complementar (CTN) que regulam o regime das isenções condicionadas, infringindo diretamente o direito dos contribuintes que atendem aos critérios legais.
A interrupção abrupta do Perse gera impactos econômicos significativos para as empresas dos setores beneficiados. Essas empresas, que planejaram investimentos e reestruturações de acordo com a continuidade da isenção até 2027, agora enfrentam uma nova realidade de custos operacionais. Essa instabilidade prejudica um setor fundamental para a economia nacional e pode comprometer a retomada econômica de atividades ainda em recuperação.
A intervenção do Poder Judiciário se torna, assim, medida essencial para restabelecer a segurança jurídica e proteger os direitos dos contribuintes. Ao assegurar o cumprimento das normas que regulamentam as relações tributárias, o Judiciário poderá garantir a preservação da integridade dos direitos adquiridos.
A expectativa é que os tribunais reconheçam tanto a inconstitucionalidade quanto a ilegalidade da alteração imposta pela Lei nº 14.859/2024, restabelecendo a isenção até março de 2027. Isso não apenas beneficiaria o setor de eventos e turismo, mas também fortaleceria a confiança no sistema jurídico e tributário brasileiro, essencial para a atração de investimentos e para a manutenção de um ambiente de negócios estável e previsível.
O Perse ilustra a importância de se respeitar os compromissos assumidos pelo Estado, sobretudo em um momento de recuperação econômica delicada. A decisão de encerrar o benefício fiscal antes do prazo não se limita aos interesses específicos de um setor, mas se projeta como um teste para a resiliência do sistema jurídico brasileiro em assegurar que leis tributárias temporárias e condicionadas sejam efetivamente honradas, preservando a segurança jurídica e os direitos dos contribuintes.
Publicado originalmente no Valor.