Por Stefanie de Oliveira, Maria Claudia Xavier e Aline Sousa
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A Comissão de Juristas para atualização do Código Civil propôs mudanças para o artigo 50 que trata do abuso da personalidade jurídica, levando em consideração o que foi consolidado ao longo dos anos pela jurisprudência e esclarecido pela doutrina.
Antes de abordar a alteração proposta para esse artigo, importante mencionar que o abuso da personalidade jurídica não era mencionado no Código Civil de 1916[1]. O tema foi regulado no Código Civil de 2002.
A norma não explanava as situações que poderiam caracterizar o abuso da personalidade jurídica, ficando ao encargo da doutrina e da jurisprudência sua definição.
Citamos um julgado proferido pelo Superior Tribunal de Justiça[2] pouco tempo depois da vigência do Código Civil de 2002, esclarecendo tanto as teorias aplicáveis ao instituto da desconsideração da personalidade – teoria maior e teoria menor –, como definindo o que poderia configurar o desvio de finalidade e a confusão patrimonial.
No intuito de conferir maior autonomia aos particulares e garantir a liberdade no exercício de atividades econômicas, a Lei n° 13.874/2019 que instituiu a “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”, trouxe alterações significativas ao caput do artigo 50 do Código Civil e incluindo a ele cinco parágrafos. A exposição de motivos da MPV 881/19[3] que se converteu nessa Lei, dispõe que a alteração dessa norma levou em consideração a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e os pareceres da Receita Federal.
A Comissão de Juristas à frente da atualização do Código Civil de 2002 também considerou a jurisprudência consolidada ao longo dos anos de sua vigência, tornando o artigo 50 mais claro quanto as hipóteses que configuram o abuso da personalidade jurídica, assim como a extensão da responsabilidade patrimonial para aqueles que desvirtuam a pessoa jurídica.
Sobre as inovações do texto legal, observa-se a inclusão de três parágrafos dispondo acerca da possibilidade de aplicação dessa norma às empresas estrangeiras e para aquelas que sejam prestadoras de serviço público (§1°), o cabimento da desconsideração da personalidade jurídica de associações, para responsabilização patrimonial daqueles com poder de direção ou de tomada de decisões (§2°) e o alcance da desconsideração inversa da personalidade jurídica, cujo procedimento foi positivado no art. 133, §2°, do Código de Processo Civil de 2015.
É importante destacar que a alteração do Código Civil de 2002 primou pela segurança jurídica, propondo a atualização do texto normativo em consonância com o contexto atual da sociedade, mas com ponderação ao que a doutrina e jurisprudência produziu ao longo da sua vigência.
Esse escopo deverá ser considerado na interpretação e aplicação do artigo 50, sendo esperado, na prática, maior previsibilidade das decisões envolvendo o abuso da personalidade jurídica, não obstante o meio processual pelo qual ela é veiculada – o incidente de desconsideração da personalidade jurídica –, ainda suscite dúvidas e o debate pela doutrina e pelos Tribunais, a exemplo da questão dos honorários advocatícios nesse incidente ou o seu cabimento na petição inicial de execução fiscal, tema que poderá ter desdobramentos nas execuções cíveis.
Destacamos no quadro a seguir, as alterações na redação do artigo 50 desde a vigência do Código Civil até o texto proposto pela Comissão de Juristas, incumbida da sua revisão:
Código Civil de 2002 | Alteração pela Lei 13.874/19 | Revisão e atualização do Código Civil |
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. | Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. | Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens de propriedade de administradores, sócios ou associados da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. |
– | §1° Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. | §1º O disposto neste artigo se aplica a todas as pessoas jurídicas de direito privado, nacionais ou estrangeiras, com atividade civil ou empresária, mesmo que prestadoras de serviço público. |
– | §2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. | §2º Na hipótese de desconsideração da personalidade jurídica de associações, a responsabilidade patrimonial será limitada aos associados com poder de direção ou com poder capaz de influenciar a tomada da decisão que configurou o abuso da personalidade jurídica. |
– | §3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica. | §3º É cabível a desconsideração da personalidade jurídica inversa, para alcançar bens de sócio, administrador ou associado que se valeram da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros. |
– | §4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. | §4º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores ou para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza, inclusive a de abuso de direito. (corresponde ao §1° do CC, 2002) |
– | §5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica. | §5º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação dos patrimônios, caracterizada: I – pela prática pelos sócios ou administradores de atos reservados à sociedade, ou pela prática de atos reservados aos sócios ou administradores pela sociedade; II – pelo cumprimento repetitivo pela pessoa jurídica de obrigações do sócio, associados ou administradores, ou vice-versa; III – pela transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e IV – por outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. (corresponde ao §2° do CC,2002) |
– | – | §6º Aos sócios e aos administradores da pessoa jurídica também se aplicam o que dispõem o caput e os §§ 1º e 2º deste artigo. (corresponde ao §3° do CC,2002) |
– | – | §7º A mera existência de grupo econômico, sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não justifica a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. (corresponde ao §4° do CC,2002) |
– | – | §8° Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica. (corresponde ao §5° do CC,2002) |
NOTAS
[1] https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/70309/704509.pdf
[2] REsp Nº 279.273-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 04/12/2003, DJe 29/03/2004: “[…] O desvio de finalidade é caracterizado pelo ato intencional dos sócios em fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica. […] A confusão patrimonial caracteriza-se pela inexistência, no campo dos fatos, de separação patrimonial do patrimônio da pessoa jurídica e do de seus sócios, ou, ainda, dos haveres de diversas pessoas jurídicas.”
[3] Item 15 da MPV 881/19 – https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Exm/Exm-MP-881-19.pdf