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24 de julho de 2024
O abuso da personalidade jurídica
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Por Stefanie de Oliveira, Maria Claudia Xavier e Aline Sousa

Este artigo faz parte do e-book “Reflexões sobre a Reforma do Código Civil”. Clique para acessar o conteúdo completo.

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A Comissão de Juristas para atualização do Código Civil propôs mudanças para o artigo 50 que trata do abuso da personalidade jurídica, levando em consideração o que foi consolidado ao longo dos anos pela jurisprudência e esclarecido pela doutrina.

Antes de abordar a alteração proposta para esse artigo, importante mencionar que o abuso da personalidade jurídica não era mencionado no Código Civil de 1916[1]. O tema foi regulado no Código Civil de 2002.

A norma não explanava as situações que poderiam caracterizar o abuso da personalidade jurídica, ficando ao encargo da doutrina e da jurisprudência sua definição.

Citamos um julgado proferido pelo Superior Tribunal de Justiça[2] pouco tempo depois da vigência do Código Civil de 2002, esclarecendo tanto as teorias aplicáveis ao instituto da desconsideração da personalidade – teoria maior e teoria menor –, como definindo o que poderia configurar o desvio de finalidade e a confusão patrimonial.

No intuito de conferir maior autonomia aos particulares e garantir a liberdade no exercício de atividades econômicas, a Lei n° 13.874/2019 que instituiu a “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”, trouxe alterações significativas ao caput do artigo 50 do Código Civil e incluindo a ele cinco parágrafos. A exposição de motivos da MPV 881/19[3] que se converteu nessa Lei, dispõe que a alteração dessa norma levou em consideração a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e os pareceres da Receita Federal.

A Comissão de Juristas à frente da atualização do Código Civil de 2002 também considerou a jurisprudência consolidada ao longo dos anos de sua vigência, tornando o artigo 50 mais claro quanto as hipóteses que configuram o abuso da personalidade jurídica, assim como a extensão da responsabilidade patrimonial para aqueles que desvirtuam a pessoa jurídica.

Sobre as inovações do texto legal, observa-se a inclusão de três parágrafos dispondo acerca da possibilidade de aplicação dessa norma às empresas estrangeiras e para aquelas que sejam prestadoras de serviço público (§1°), o cabimento da desconsideração da personalidade jurídica de associações, para responsabilização patrimonial daqueles com poder de direção ou de tomada de decisões (§2°) e o alcance da desconsideração inversa da personalidade jurídica, cujo procedimento foi positivado no art. 133, §2°, do Código de Processo Civil de 2015.

É importante destacar que a alteração do Código Civil de 2002 primou pela segurança jurídica, propondo a atualização do texto normativo em consonância com o contexto atual da sociedade, mas com ponderação ao que a doutrina e jurisprudência produziu ao longo da sua vigência.

Esse escopo deverá ser considerado na interpretação e aplicação do artigo 50, sendo esperado, na prática, maior previsibilidade das decisões envolvendo o abuso da personalidade jurídica, não obstante o meio processual pelo qual ela é veiculada – o incidente de desconsideração da personalidade jurídica –, ainda suscite dúvidas e o debate pela doutrina e pelos Tribunais, a exemplo da questão dos honorários advocatícios nesse incidente ou o seu cabimento na petição inicial de execução fiscal, tema que poderá ter desdobramentos nas execuções cíveis.   

Destacamos no quadro a seguir, as alterações na redação do artigo 50 desde a vigência do Código Civil até o texto proposto pela Comissão de Juristas, incumbida da sua revisão:

Código Civil de 2002Alteração pela Lei 13.874/19Revisão e atualização do Código Civil
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.Art. 50.  Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens de propriedade de administradores, sócios ou associados da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
§1° Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.§1º O disposto neste artigo se aplica a todas as pessoas jurídicas de direito privado, nacionais ou estrangeiras, com atividade civil ou empresária, mesmo que prestadoras de serviço público.
§2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.§2º Na hipótese de desconsideração da personalidade jurídica de associações, a responsabilidade patrimonial será limitada aos associados com poder de direção ou com poder capaz de influenciar a tomada da decisão que configurou o abuso da personalidade jurídica.
§3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.§3º É cabível a desconsideração da personalidade jurídica inversa, para alcançar bens de sócio, administrador ou associado que se valeram da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros.
§4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.§4º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores ou para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza, inclusive a de abuso de direito. (corresponde ao §1° do CC, 2002)
§5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.§5º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação dos patrimônios, caracterizada: I – pela prática pelos sócios ou administradores de atos reservados à sociedade, ou pela prática de atos reservados aos sócios ou administradores pela sociedade; II – pelo cumprimento repetitivo pela pessoa jurídica de obrigações do sócio, associados ou administradores, ou vice-versa; III – pela transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e IV – por outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. (corresponde ao §2° do CC,2002)
§6º Aos sócios e aos administradores da pessoa jurídica também se aplicam o que dispõem o caput e os §§ 1º e 2º deste artigo. (corresponde ao §3° do CC,2002)
§7º A mera existência de grupo econômico, sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não justifica a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. (corresponde ao §4° do CC,2002)
§8° Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica. (corresponde ao §5° do CC,2002)

NOTAS

[1] https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/70309/704509.pdf

[2] REsp Nº 279.273-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 04/12/2003, DJe 29/03/2004: “[…] O desvio de finalidade é caracterizado pelo ato intencional dos sócios em fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica. […] A confusão patrimonial caracteriza-se pela inexistência, no campo dos fatos, de separação patrimonial do patrimônio da pessoa jurídica e do de seus sócios, ou, ainda, dos haveres de diversas pessoas jurídicas.”

[3] Item 15 da MPV 881/19 – https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Exm/Exm-MP-881-19.pdf