Por Rodrigo Quadrante para o Consultor Jurídico
Os processos de falência, desde a votação do Projeto de Lei 03/2.024 pela Câmara dos Deputados, foram objeto de inúmeras notícias de jornais e trabalhos acadêmicos, os quais abordaram a ineficiência do sistema de insolvência e a baixa taxa de recuperação do crédito concedido às empresas que tiveram a sua falência decretada.
Os trabalhos de jurimetria sobre a eficácia dos processos de falência não são animadores, pois um processo de falência dura, em média, dez anos até o seu encerramento, com os credores recebendo, em média, apenas 6% dos créditos concedidos à empresa falida. [1]
No entanto, é indiscutível que a Lei 14.112/2.020 dará maior celeridade e eficácia aos processos de falência. Ainda assim, os efeitos dessas recentes mudanças não são visíveis na prática cotidiana. Isto porque estas mudanças são novas e os próprios credores, administradores judiciais e membros do Poder Judiciário estão se adaptando as alterações.
Com efeito, apenas a título de ilustração, sabe-se que, após as alterações introduzidas pela Lei 14.112/2020, o administrador judicial deve proceder à venda de todos os bens da massa falida dentro do prazo de 180 dias [2], o credor deve apresentar seu pedido de habilitação ou reserva de crédito no prazo máximo de três anos após a decretação da falência [3], eis que as obrigações do falido se extinguem após este período. [4]
Essas mudanças, em tese, acelerariam o recebimento do crédito dos credores habilitados [5] e permitiriam o encerramento da falência com a extinção das obrigações do falido, reabilitando-o à vida empresarial dentro do prazo de três anos.
A reabilitação do falido e a extinção das suas obrigações, que antes da reforma da LRF de 2020 eram muito lentas, agora podem ocorrer em um período significativamente menor. [6]
Riscos
Contudo, a reforma também trouxe risco aos credores, os quais, caso não habilitem o seu crédito dentro do prazo de três anos a contar da decretação da falência, poderão ser alcançados pela decadência do seu direto. Com efeito, o encerramento das obrigações do falido, nesta hipótese, não decorreria do pagamento das obrigações, mas sim do decurso do prazo de três anos.
O Fresh Start nada mais é do que a possibilidade de o falido encerrar seu processo de falência e ter suas obrigações extintas após três anos da decretação da falência. Assim, se aplicado em larga escala pelo Poder Judiciário, esse mecanismo pode implicar em uma profunda mudança cultural e fomentar o empreendedorismo, permitindo a reabilitação rápida do falido à vida econômica, nos termos do inciso III do artigo 75 da LRF. [7]
Como se sabe, qualquer mudança cultural é um processo de transformação dos valores, crenças e práticas de uma sociedade, sendo estas alterações legislativas o resultado destes legítimos anseios da sociedade quanto a maior celeridade e eficácia nos processos de falência. Isto porque um processo moroso, caro e ineficaz não é do interesse nem do falido, tampouco dos credores.
Estes anseios sociais já são vistos nos processos de falência anteriores a reforma da LRF de 2.020, eis que foram inúmeros casos em que os falidos pediram a extinção das suas obrigações pelo decurso do prazo de três anos.
O Poder Judiciário, infelizmente, não pôde aplicar a extinção das obrigações do falido naqueles processos de falência que foram decretados antes da reforma da LRF de 2020. [8]
Isto porque o Poder Judiciário, em grande parte dos casos, não conseguiu contornar o início da vigência da reforma da LFR de 2020 [9], não podendo o novo artigo referente à extinção das obrigações do falido [10] ser aplicado as falências decretadas antes da vigência da LRF de 2020, sob pena de trazer grande insegurança jurídica ao sistema de insolvência brasileiro. [11]
Todavia, o mais curioso é que, na hipótese dos processos de falência que foram decretados antes da reforma da LFR de 2020, nos quais a arrecadação dos bens foi negativa, o Poder Judiciário poderá aplicar o Fresh Start [12] pela patente ineficácia do processo de falência. [13]
Nesta hipótese, pouco importa se a falência foi decretada ainda na vigência do Decreto Lei 7.661/1945, ou, após a vigência da Lei 11.101/2005, pois, como o processo de falência não teria qualquer utilidade aos credores, este deverá ser encerrado com a reabilitação do falido. [14]
Cumpre notar, entretanto, que qualquer mudança cultural pode encontrar resistência, aqui, nos próprios credores que se insurgirão contra o encerramento mais célere da falência. Essa insurgência não é fenômeno novo no sistema de insolvência brasileiro, pois já ocorreu em vários casos de encerramento do processo de recuperação judicial dois anos após a sua concessão. [15]
Ademais, o próprio fisco é a primeira exceção ao mecanismo de Fresh Start, eis que ele não está sujeito a extinção dos seus créditos pelo decurso do prazo de três anos. Sem um maior aprofundamento sobre o tema, é certo que a extinção do crédito fiscal e a reabilitação do falido deverá ser, no futuro, um relevante ponto a ser tratado pelo Poder Judiciário, pois, em grande parte das falências, a dívida fiscal será um grande empecilho ao restabelecimento empresarial do falido. [16]
Por todo exposto, a Lei 14.112/2020 representa um avanço significativo na modernização do sistema de insolvência brasileiro, especialmente com a introdução do conceito de Fresh Start. No entanto, a plena realização dos benefícios dessa reforma ainda depende de uma adaptação cultural por parte dos credores, dos administradores judiciais e o próprio Poder Judiciário, devendo este último, modernizar a sua posição quanto ao crédito fiscal e o Fresh Start, sob pena de eventual resistência cultural inviabilizar os mecanismos de reabilitação do falido.
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[1] Associação Brasileira de Jurimetria, Observatório da Insolvência, Fase 3: Falências no Estado de São Paulo, 29 de abril de 2022.
[2] Letra J, do Inciso III do artigo 22 da LRF
[3] Inciso 10º do artigo 10 da LRF. Ainda neste sentido, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Agravo de instrumento número 2060939-72.2024.8.26.0000, Rel. Des. Azuma Nishi e Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo número 2124925-34.2023.8.26.0000, Rel. Des. J.B. Franco de Godoi.
[4] Inciso V do artigo 158 da LRF
[5] Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Agravo de instrumento número 2141834-25.2021.8.26.0000, Rel. Des. Sérgio Shimura.
[6] Antes da Lei 14.112/2020, a extinção das obrigações do falido poderia ocorrer quando houvesse (i) o pagamento de todos os créditos;(ii) o pagamento, depois de realizado todo o ativo, de mais de 50% dos créditos quirografários; (iii) o decurso do prazo de 5 anos, contados do encerramento da falência, se o falido não tivesse sido condenado por prática de crime previsto na LRF e (iv) o decurso do prazo de 10 anos, contados do encerramento da falência, se o falido tivesse sido condenado por prática de crime previsto na LRF.
[7] Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência, Daniel Carnio Costa e Alexandre Nasser de Melo, Ed. Juruá, p. 507.
[8] Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação número 1007326-19.2021.8.26.0564, Rel. Des. Fortes Barbosa; Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Agravo de instrumento 0091153-12.2023.8.19.0000, Rel. Des. Maria Helena Pinto Machado; Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, Agravo de instrumento número 0038561-72.2023.8.16.0000, Rel. Des. Reis do Amaral.
[9] Artigo 5º da Lei 14.122/20 – Os dispositivos constantes dos incisos seguintes somente serão aplicáveis às falências decretadas, inclusive as decorrentes de convolação, e aos pedidos de recuperação judicial ou extrajudicial ajuizados após o inicio da vigência desta lei: IV – as disposições previstas no inciso V do caput do art. 158 da Lei número 11.101, de 09 de fevereiro de 2005.
[10] Inciso V do artigo 158 da LRF
[11] “Ora, tempus regit actum, isto é, os atos jurídicos se regem pela lei da época em que ocorreram. Com o objetivo de assegurar a segurança, a certeza e a estabilidade do ordenamento jurídico, adotou-se a regra de que a lei nova não será aplicada às situações constituídas sobre a vigência da lei revogada ou modificada.” Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Apelação 5052900-25.2021.8.24.0023, Des. Rel. Soraya Nunes Lins.
[12] Inciso 5 do artigo 5 da Lei 14.112/2020, artigo 114-A e Inciso VI do artigo 158 da LRF.
[13] Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação número 5008959-55.2020.8.21.0019, Rel. Des. Gelson Rolim Stocker.
[14] Artigo 5º da Lei 14122/2020 – O disposto no inciso VI do caput do artigo 158 terá aplicação imediata, inclusive às falências regidas pelo Decreto-lei 7.661, de 21 de junho de 1945.
[15] Neste sentido, artigo 61 LRF e Superior Tribunal de Justiça, Recurso especial número 1.853.347, Rel. Min. Ricardo Cueva.
[16] Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação número 1066147-50.2021.8.26.0100, Rel. Des. J.B. Paula Lima e Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, Apelação número 0285912-04.2021.8.06.0001, Rel. Des. Maria de Fátima de Melo Loureiro.