Por Rodrigo Quadrante para o ConJur
O agronegócio brasileiro passou por um intenso processo de expansão e modernização nas últimas décadas, consolidando-se como um dos principais motores da economia nacional. No entanto, essa evolução trouxe consigo uma crescente demanda por financiamento, tornando o crédito uma peça fundamental para viabilizar o custeio da produção, investimento em infraestrutura e inovação do setor.
Nesse cenário, as cooperativas de crédito assumiram um papel estratégico, especialmente em regiões onde o acesso a instituições financeiras tradicionais é mais limitado [1]. Elas se tornaram importantes parceiras dos produtores rurais, oferecendo linhas de crédito adaptadas à realidade do campo e fortalecendo os laços de confiança entre cooperados e cooperativas.
No entanto, diante do aumento dos processos de recuperação judicial de produtores rurais e empresas do agronegócio, o legislador alterou a LFR, por meio da Lei 14.122/2020, para introduzir o inciso 13º do artigo 6º da LFR, o qual dispõe que “não se sujeita aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do art. 79 da Lei número 5.764/71.”
Ainda que a alteração legal introduzida pelo inciso 13º do artigo 6º da LFR pareça ter deixado clara a natureza extraconcursal do crédito concedido pelas cooperativas de crédito aos seus cooperados, o Poder Judiciário tem determinado a análise fática de cada caso, em especial, do ato cooperativo, não sendo possível aplicar o texto legal para todas as hipóteses.
Isso porque, inicialmente, tem-se que o artigo 79 da Lei 5.764/71 define que “os atos cooperativos são aqueles praticados entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associados, para a consecução dos objetivos sociais”
A definição acima deixa claro que apenas o empréstimo concedido pela cooperativa ao seu cooperado é um ato cooperativo, sendo, portanto, um crédito extraconcursal. Todavia, aquele crédito concedido pela cooperativa de crédito a um devedor que não seja seu cooperado não é um crédito extraconcursal pela própria lógica do artigo 79 da Lei 5.764/71 e do inciso 13º do artigo 6º da LFR.
O grande debate nasce quando o ato cooperativo implique na concessão de um crédito pela cooperativa ao seu cooperado que pediu recuperação judicial, em especial, quando esta operação se assemelha a uma simples operação de mercado.
Isso porque o parágrafo único do artigo 79 da Lei 5.764/71 define que “o ato cooperativo não implica operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria”, tendo o inciso 1º do artigo 1º da Lei Complementar 130/2009 determinado que “as competências legais do Conselho Monetário Nacional e do Banco Central do Brasil em relação às instituições financeiras aplicam-se às cooperativas de crédito e às confederações de serviço constituídas por cooperativas centrais de crédito”.
Entendimentos do TJ-SP e do STJ
A simples análise desses artigos poderia levar à conclusão de que as cooperativas de crédito se assemelham às instituições financeiras e praticam operações de mercado, não sendo cooperativas que praticam atos cooperativos, nos termos da Lei 5.764/1971, o que implicaria, por consequência, na existência de direitos destas cooperativas sujeitos a recuperação judicial.
Ora, como as cooperativas de crédito podem prestar serviços de natureza financeira, o que poderia ser entendido como uma operação de mercado, sendo elas assemelhadas às instituições financeiras, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, nos termos do Acórdão nº 2105754-28.2022.8.26.0000, concluiu que:
“o caso vertente envolve cooperativa de crédito, cuja natureza e atividade não se confundem com as demais cooperativas (estas sim, são consideradas sociedades simples, portanto, não se sujeitando à falência). Tais comandos normativos não se dirigem às cooperativas de crédito, por serem consideradas instituições financeiras. A seu turno, a Lei Complementar número 130/2009, ao dispor sobre o Sistema Nacional de Crédito Cooperativo, autoriza a prestação de serviços de natureza financeira (operações de crédito) a associados e a não associados, evidenciando que a cooperativa de crédito foge aos limites previstos na Lei das Cooperativas. (lei n.5764/71). Nesse contexto, tem-se que o crédito da cooperativa agravada se sujeita aos efeitos da recuperação judicial” [2].
Contudo, a posição acima não é pacífica, eis que a outorga de crédito pelas cooperativas aos seus cooperados é fenômeno de mutualidade, no qual o cooperado se associa a cooperativa, através de uma contribuição, para que ele receba desta uma linha de crédito, ou ainda, produtos financeiros que possam lhe ajudar na sua atividade econômica.
Neste sentido, é o Acórdão nº 2324622-36.2023.8.26.0000, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no qual se entendeu que
“a prática do ato cooperativo não constitui, portanto, uma operação de mercado, motivo pelo qual as cooperativas em geral, na qualidade de sociedade “sui generis”, sem objetivo de lucro, submetem-se a uma disciplina jurídica específica diante de uma recuperação judicial. Derivadas do fenômeno da mutualidade, as sociedades cooperativas não ostentam o escopo de lucro e natureza empresária, sendo sua função primordial a criação de um ambiente adequado ao desenvolvimento da atividade de seus sócios, os quais fornecem suporte à manutenção da pessoa jurídica por meio de sua contribuição individual. Persiste uma relação simbiótica indutiva de um incremento qualitativo da atividade dos sócios, que não buscam auferir lucros, mas, isso sim, vantagens indiretas, tornando-se clientes exclusivos da sociedade. No caso de uma cooperativa de crédito, os cooperados buscam acesso a serviços financeiros disponibilizados para aqueles que contribuem para a formação de seu capital e viabilizaram sua atuação em favor de uma coletividade” [3].
Como se vê, o que o inciso 13º do artigo 6º da LFR protege não é simplesmente o crédito concedido pela cooperativa, mas também todos os cooperados que contribuíram para a constituição da cooperativa de crédito e o próprio Sistema Nacional de Crédito Cooperativo, fazendo com que o crédito outorgado seja um crédito extraconcursal que deverá ser pago com preferência aos demais créditos listados pelo devedor.
A proteção do ato cooperativo, por sua vez, é tema que já foi tratado pelo Superior Tribunal de Justiça em demandas tributárias, tendo se entendido, no Recurso Especial nº 1951158/CE, o qual teve como relator o ministro Mauro Campbell que “no caso exclusivo das cooperativas de crédito, já assentou este Superior Tribunal de Justiça que o ato cooperativo típico abarca também toda a movimentação financeira das cooperativas de crédito, incluindo a captação de recursos, a realização de empréstimos aos cooperados, bem como a efetivação de aplicações financeiras no mercado” [4].
Ainda que o Superior Tribunal de Justiça já tenha concluído que as cooperativas de crédito realizam atos cooperativos ao concederem empréstimos, não se descaracterizando o ato cooperativo pela emissão dos instrumentos creditícios, tampouco a sua submissão ao Banco Central do Brasil e ao Conselho Monetário Nacional, é certo que tais conclusões foram tomadas em demandas tributárias que analisavam a incidência do imposto de renda sobre tais operações, não se tendo pacificado o tema em matéria falimentar [5].
Por todo exposto, a natureza extraconcursal do crédito cooperativo não é um tema pacífico perante os nossos tribunais, ainda que o inciso 13º do artigo 6º da LFR seja claro ao determinar a sua não sujeição à recuperação judicial. Contudo, ainda que os tribunais estaduais não tenham pacificado um entendimento sobre o tema, acredita-se que o Superior Tribunal de Justiça decidirá pela não sujeição do crédito cooperativo à recuperação judicial, em razão da sua posição já pacificada sobre o tema em matéria tributária.
[1] Inciso 2º do artigo 2º da Lei Complementar 130/2009 – As cooperativas de crédito destinam-se, precipuamente, a prover, por meio da mutualidade, a prestação de serviços financeiros a seus associados, sendo-lhes assegurado o acesso aos instrumentos do mercado financeiro.
[2] Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, acórdão 210554-28.2022.8.26.0000, Rel. Des. Sérgio Shimura. Ainda no mesmo sentido, Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso, acórdão número 1000646-39.2025.8.11.0000, Rel. Des. Sebastião de Arruda Almeida e Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso, acórdão número 1414025-86.2024.8.12.0000, Rel. Des. Odemilson Roberto Castro Fassa.
[3] Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, acórdão 2324622-36.2023.8.26.0000, Rel. Des. Fortes Barbosa. Ainda no mesmo sentido, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, acórdão 2116462-69.2024.8.26.0000, Rel. Des. Alexandre Lazzarini, Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, acórdão 0116045-66.2023.8.16.0000, Rel. Des. Luiz Antônio Barry e Tribunal de Justiça de Santa Catarina, acórdão 5039590-16.2024.8.24.0000, Rel. Des. Dinart Francisco Machado.
[4] STJ, Recurso Especial 1951158/CE, Rel. Min. Mauro Campbell. Ainda no mesmo sentido, Recurso Especial 1741047/SP, Rel. Min. Herman Benjamin e Recurso Especial 717126/SC, Rel. Min. Herman Benjamin.
[5] Súmula 262 do Superior Tribunal de Justiça.
Rodrigo Eduardo Quadrante
é advogado, mestre pela PUC-SP e sócio do escritório Leite, Tosto e Barros Advogados Associados.