Por Alexandre Lima, Rafael Cardoso e Sérgio Pereira Filho
Este artigo faz parte do e-book “Reflexões sobre a Reforma do Código Civil”. Clique para acessar o conteúdo completo.
O Código Civil vigente (Lei nº 10.406/2002), em seu artigo 391, prevê que “pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor”. Trata-se de regra não absoluta, na medida em que o próprio Código Civil e outras leis esparsas preveem hipóteses de impenhorabilidade de bens.
A exemplo da mencionada exceção, temos o chamado bem de família convencional, instituído pela Lei nº 8.009/90, a qual preconiza que o imóvel próprio, utilizado pelo devedor para fins residenciais, em regra, não “responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza”.
Em razão da apresentação do anteprojeto de Lei para revisão e atualização do atual Código Civil, o presente artigo destacará a proposta de inserção do artigo 391-A, especificamente no que diz respeito ao seu parágrafo terceiro, por meio do qual a comissão de juristas em questão propõe tornar expressamente previsto em lei a possibilidade de penhora do bem de família convencional, em percentual equivalente a até 50% de seu valor de mercado, quando este for um bem imóvel de “alto padrão”.
A alteração, se aprovada nos exatos termos propostos, pacificará a discussão atualmente existente na jurisprudência. Isso porque, de acordo com o entendimento consolidado do C. Superior Tribunal de Justiça[1], o principal obstáculo à aplicabilidade de tese da penhorabilidade do imóvel residencial de alto padrão é, justamente, a completa ausência de previsão legislativa neste sentido.
Contudo, ainda que o texto seja aprovado sem quaisquer ressalvas ou alterações, o tema ensejará outras discussões que certamente darão origem à novas controvérsias.
A principal controvérsia, a que tudo indica, será em relação ao próprio conceito de “casa de morada de alto padrão”. O anteprojeto ora em comento prevê apenas a possibilidade de penhora do bem imóvel de alto padrão utilizado para fins residenciais, mas não específica quais os critérios deverão ser considerados pelos magistrados a fim de se definir quais bens se enquadram ou não no referido conceito.
Apenas a título exemplificativo, destaca-se que, no passado, o E. Tribunal de Justiça de São Paulojá entendeu pela possibilidade de excepcionalização da regra da impenhorabilidade levando em consideração o valor de mercado do imóvel e a finalidade social da Lei nº 8.009/90, hipótese que se concluiu que o devedor não necessitaria da proteção legal conferida ao bem de família[2].
Em outro caso mais recentemente julgado[3], o E. Tribunal de Justiça de São Paulo concluiu pela possibilidade de penhora de imóvel que o devedor alegava ser bem de família através de um exercício de ponderação e razoabilidade que levou em consideração outros aspectos além do valor do imóvel e o aspecto social da lei. No referido caso, considerou-se (i) o fato de o imóvel estar situado em bairro típico de imóveis de alto padrão aquisitivo, (ii) o valor da dívida corresponder a menos de 10% do valor de mercado do imóvel, e (iii) a inexistência de prova cabal quanto à finalidade residencial alegada pelo devedor. Em igual sentido foi entendimento do E. Tribunal de Justiça de Minas Gerais quando, há tempos, apreciou o tema[4].
Em conclusão, possível afirmar que o anteprojeto apresentado contribui para uma efetiva modernização da legislação brasileira, na medida em que se propõe a superação de um tema que há muito tempo mobiliza a advocacia. Ademais, merece destaque o fato de que a solução proposta é em sentido de compatibilizar direitos e interesses de credores sem, contudo, negligenciar direitos sociais e a garantias de um patrimônio mínimo existencial. Aguarda-se, com boas expectativas, as próximas etapas de tramitação.
NOTAS
[1] “A lei não prevê qualquer restrição à garantia do imóvel como bem de família relativamente ao seu valor, tampouco estabelece regime jurídico distinto no que tange à impenhorabilidade, ou seja, os imóveis residenciais de alto padrão ou de luxo não estão excluídos, em razão do seu valor econômico, da proteção conferida aos bens de família consoante os ditames da Lei 8009/90.” (REsp n. 1.351.571/SP, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, Relator para acórdão Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 27/9/2016, DJe de 11/11/2016.)
[2] “A interpretação sistemática e teológica do art. 1º da Lei nº. 8.009/90, mediante ponderação dos princípios constitucionais que informam a impenhorabilidade do bem de família e garantem o direito de ação com duração razoável do processo, à luz dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, permite a penhora de imóvel de valor vultoso (R$ 24.000.000,00), ainda que destinado à moradia do devedor.” (TJSP – Agravo de Instrumento 2075933-13.2021.8.26.0000; Relator: Ademir Modesto de Souza; 16ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 08/06/2021; Data de Registro: 05/07/2021).
[3] TJSP – Agravo de Instrumento 2262801-31.2023.8.26.0000; Relator: Castro Figliolia; Órgão Julgador: 12ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 11/04/2024; Data de Registro: 11/04/2024.
[4] TJMG – Agravo de Instrumento 1.0024.06.986805-7/005, Relator: Duarte de Paula, Órgão Julgador: 11ª Câmara Cível, Data de Julgamento: 05/03/2008, Data de Publicação: 19/03/2008.