Por Fernando Cordeiro da Luz
Este artigo faz parte do e-book “Reflexões sobre a Reforma do Código Civil”. Clique para acessar o conteúdo completo.
A comissão de juristas nomeada para elaboração do anteprojeto de reforma do Código Civil entregou, no último dia 17 de abril, o relatório final de seus trabalhos ao Senado Federal.
A reforma atinge todos os livros do Código Civil de 2002, trazendo modernização ao texto – cujo projeto original data de 1976 – ajustando-o à jurisprudência dos Tribunais Superiores, às transformações sociais ocorridas nos últimos vinte anos e às novas ferramentas tecnológicas postas à disposição da sociedade e das relações jurídicas.
Nesse sentido, o texto adota, em diversos pontos, a utilização de meios eletrônicos, normatizando o chamado Direito Digital, e procurando, dentre outras medidas, modernizar a formatação das relações negociais e seus desdobramentos.
Dentro dessa normatização, insere-se a modificação do artigo 397 do Código Civil, que cuida da constituição do devedor em mora.
Atualmente, o texto apresenta a seguinte redação: “Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor.” Parágrafo único. Não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial.
Considera-se em mora, na dicção do artigo 394 do Código Civil, o “devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer”. O dispositivo em questão considera tanto a mora do credor (accipiendi) – que desafia o pagamento por consignação, quanto a do devedor.
Partindo desse conceito é que o artigo 397 estabelece o momento em que o devedor é constituído em mora, o que gera reflexos em razão das suas consequências, previstas no artigo 395 do Código Civil (ressarcimento de prejuízos, incidência de atualização monetária e juros e honorários de advogado), além da aplicação de eventual cláusula penal (art. 408 e seguintes).
Ao regular a constituição do devedor em mora, o artigo 397 do Código Civil diferencia as obrigações a termo, com tempo, lugar e forma certos para cumprimento da obrigação, em que o simples descumprimento no prazo ajustado constitui o devedor em mora (dies interpelat pro ominem), das obrigações sem termo ajustado, em que a constituição em mora depende de interpelação judicial ou extrajudicial.
É justamente acerca da interpelação extrajudicial que se propõe a reforma do artigo 397:
“Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo final, constitui de pleno direito em mora o devedor.
§1º Não havendo termo final, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial.
§ 2º Se as partes não fixarem termo para o adimplemento, o devedor se considera em mora desde sua interpelação.
§3º As partes podem admitir, por escrito, que a interpelação possa ser feita por meios eletrônicos como e-mail ou aplicativos de conversa on-line, após ciência inequívoca da mensagem pelo interpelado.”
Pela nova redação do artigo 397, especialmente do seu § 3º, reduz-se o formalismo na interpelação judicial, atualmente feita por notificação extrajudicial através de Cartório de Notas ou mesmo por correspondência registrada, com aviso de recebimento, passando-se a admitir a interpelação por correspondência eletrônica (e-mail) ou mesmo pela utilização de aplicativos de conversa, tais como o Whatsapp e Telegram.
Atualmente, a jurisprudência dos Tribunais, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, revela-se recalcitrante na admissão dessas vias como prova de interpelação judicial a constituir o devedor em mora, considerando que “a ciência inequívoca de seu recebimento pressuporia o exame de uma infinidade de aspectos relacionados à existência de correio eletrônico do devedor fiduciante, ao efetivo uso da ferramenta pelo devedor fiduciante, a estabilidade e segurança da ferramenta de correio eletrônico e a inexistência de um sistema de aferição que possua certificação ou regulamentação normativa no Brasil” (1).
Seguindo esse mesmo vetor de entendimento, os Tribunais não têm admitido, igualmente, a utilização de aplicativos de conversa, quer porque “mensagem não substitui a formalidade exigida em lei” (2) para constituição em mora, quer porque, não havendo prova inequívoca do recebimento, a comunicação deixa “dúvida existente em torno da regularidade da constituição em mora do réu” (3).
A proposta de nova redação do artigo 397 do Código Civil, supre a ausência de previsão legal do uso dessas ferramentas na constituição do devedor em mora – nos casos em que é necessária a interpelação – não dirimindo, porém, a dificuldade acerca da certeza do efetivo recebimento da comunicação pelo devedor, questão que, certamente, submeter-se-á à interpretação dos Tribunais.
Por fim, importante ressaltar que, segundo imposição do próprio dispositivo, a utilização dessas ferramentas eletrônicas de comunicação estará condicionada a prévia e expressa convenção entre as partes em contrato escrito.
NOTAS
(1) REsp n. 2.035.041/RS, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 25/4/2023, DJe de 27/4/2023.
(2) TJSP; Agravo de Instrumento 2327357-42.2023.8.26.0000; Relator (a): Neto Barbosa Ferreira; Órgão Julgador: 29ª Câmara de Direito Privado; Foro de Votuporanga – 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 31/01/2024; Data de Registro: 31/01/2024
(3) TJSP; Agravo de Instrumento 2296389-63.2022.8.26.0000; Relator (a): Ruy Coppola; Órgão Julgador: 32ª Câmara de Direito Privado; Foro de Osasco – 2ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 14/02/2023; Data de Registro: 14/02/2023